Documentos da investigação que mira Jair Bolsonaro (PL), familiares e seus ex-assessores mostram que uma série de quebras de sigilo determinadas por Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal), expôs a rotina e detalhes do gabinete presidencial.
Uma quebra ordenada ainda em 2021 permitiu à Polícia Federal acessar a nuvem em que eram armazenadas todas as conversas do tenente-coronel Mauro Cid, ajudante de ordens do ex-presidente.
As mensagens, às quais a Folha de S.Paulo teve acesso em parte, mostram detalhes da rotina da Presidência e diálogos entre assessores abordando desde assuntos corriqueiros, como escalas de horário de servidores e desavenças entre colegas de trabalho, até temas como considerações sobre a possível demissão de Paulo Guedes (Economia) pela escalada no preço do diesel em 2021.
A partir de acesso às conversas de Mauro Cid, a PF teve ao menos outras cinco autorizações de Moraes para quebra de sigilos bancário, telemático e fiscal de pelo menos 13 pessoas e de uma empresa –incluindo três assessores de Bolsonaro e duas assessoras da ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro.
No período, a corporação apontou indícios de crimes, mas disse ainda haver dúvida e até o momento não chegou a nenhuma conclusão, mesmo com conversas e contas abertas.
Na parte dos dados bancários, Moraes chegou a autorizar em alguns casos o acesso a informações de 2018, período anterior ao governo Bolsonaro –encerrado em dezembro de 2022.
A série de quebras ao longo de 2022 alimentaram a PF em ao menos três linhas de investigação que miram Bolsonaro e seus principais apoiadores.
A primeira é sobre um suposto esquema de desvio de dinheiro da Presidência por meio de Mauro Cid e outros funcionários do Planalto a pedido de Michelle Bolsonaro.
Já a segunda mira a participação do ex-ajudante de ordens da Presidência e outros aliados nas investidas golpistas de Bolsonaro, do 7 de setembro de 2021 ao 8 de janeiro de 2023.
Por fim, o conteúdo das mensagens serviu como indício para embasar a busca e apreensão contra o ex-mandatário, além de várias prisões, pela suspeita de fraude ao sistema de vacinação do Ministério da Saúde.
Foram presos Mauro Cid e Luis Marcos dos Reis (ex-ajudante de ordens e ex-assessor, respectivamente), Max Guilherme de Moura e Sergio Cordeiro (seguranças de Bolsonaro), além de Ailton Moraes Barros (militar amigo do ex-presidente).
As quebras de sigilo também mostram como se davam decisões, montagem de discursos e até reuniões escondidas de Bolsonaro com outras autoridades.
Em 16 de outubro de 2021, por exemplo, Mauro Cid informou ao chefe de gabinete de Bolsonaro, Célio Faria, um novo aumento no preço do diesel e comentou em seguida: “PG não dura muito”, em alusão ao então ministro Paulo Guedes.
A mensagem foi enviada por volta das 13h. No final da tarde, às 16h17, Cid voltou a falar com Célio para avisar a ida do então presidente à Granja do Torto, residência oficial de Guedes durante parte do governo. Cerca de duas horas depois, Cid mandou nova mensagem e diz ao chefe de gabinete: “Não cai”. Célio Faria respondeu que já imaginava essa decisão: “Ele vai abrir as pernas”.
Cinco dias após o encontro com Guedes, Bolsonaro anunciou que o governo criaria um auxílio para caminhoneiros em razão da alta do diesel. Ele disse que a medida beneficiaria cerca de 750 mil trabalhadores no setor.
As quebras de sigilo telemático –Mauro Cid foi alvo de ao menos três em cerca de dois anos– também mostram a equipe do gabinete presidencial em conversas cotidianas, na organização da agenda do presidente, discutindo entre si por erros de comunicação e, também, ironizando integrantes do governo.
Em 24 de julho de 2021, Célio Faria reclama de problemas na agenda de Bolsonaro devido a pedidos que chegavam diretamente ao chefe do Executivo. Após ressaltar sua função na organização da agenda, Célio se queixa a Cid do presidente aceitar os pedidos.
Cid, então, responde em tom de deboche: “Hahahahahahaha Não tem jeito…Pelo menos Gilson e Seif sumiram essa semana”. Jorge Seif era o secretário de Pesca à época. Gilson Machado, o chefe da Embratur. Os dois participavam de vários compromissos com Bolsonaro.
A devassa feita pela PF nas conversas com autorização de Moraes foi alvo de críticas do próprio Bolsonaro.
Após a Folha de S.Paulo revelar a quebra do sigilo bancário e as transações suspeitas entre funcionários da Presidência, Bolsonaro afirmou em setembro de 2022 que Mauro Cid era uma pessoa de sua “confiança” e que tinha acesso à sua vida particular e a decisões de governo, igualmente a presidentes de outros países.
Em resposta ao magistrado, o então presidente afirmou que sua agenda tem um grau de sigilo ultrassecreto, e que a medida foi tomada para ter acesso às informações nacionais.
“Alexandre, você mexer comigo é uma coisa, você mexer com minha esposa, você ultrapassou todos os limites, Moraes, todos os limites. Está pensando o que da vida? Que pode tudo e tudo bem? Você um dia vai dar uma canetada e me prender? Isso que passa na tua cabeça? É uma covardia”, disse na ocasião.
Cronologia dos pedidos da PF, manifestações da PGR e decisões de Moraes no caso de Mauro Cid:
17 de fevereiro de 2022: PGR pede arquivamento do inquérito 4.878, que investiga o vazamento de investigação do ataque hacker ao TSE
2 de maio: Moraes pede à PF “relatório minucioso de análise de todo o material colhido a partir da determinação da quebra de sigilo telemático, preservado o sigilo das informações”
6 de maio: AGU interpõe agravo regimental cobrando de Moraes a apreciação do pedido de arquivamento da PGR
3 a 17 de junho: PF envia para Moraes relatórios com análise parcial dos dados encontrados na quebra telemática de Mauro Cid
21 de junho: PF pede quebra de sigilo bancário de Mauro Cid, Adriano Teperino e Osmar Crivelatti, das assessoras de Michelle Cintia Cortes e Giselle Carneiro, além de Rosemary Cardoso Cordeiro e Maria Graces de Moraes Braga. As duas receberam valores a pedido das assessoras de Michelle e por meio dos assessores
27 de junho: Moraes autoriza as quebras de sigilo pedidas pela PF em 21 de junho
1º a 22 de julho: PF envia novos relatórios de análise do material encontrado na nuvem de Mauro Cid
1 de agosto: PGR dá parecer favorável ao agravo da AGU e interpõe agravo regimental contra a decisão de Moraes que havia quebrado o sigilo de Mauro Cid e outros assessores de Jair e Michelle Bolsonaro.
8 de agosto: PF pede novas quebras de sigilo bancário: de Luis Marcos dos Reis, ajudante de ordens de Bolsonaro, e de Irinaldo Alencar Nascimento, João Norberto Ribeiro e Luiz Antônio Goncalves de Oliveira; e também a extensão das quebras de Cid e outros alvos do primeiro pedido para período de 2019 até agosto de 2022
9 de agosto: Moraes autoriza novas quebras e extensões de levantamentos de sigilo de assessores de Bolsonaro e Michelle
15 de agosto: PGR interpôs novo agravo regimental contra as decisões de Moraes
20 de setembro: PF envia novo relatório de análise do material coletado a partir das quebras de sigilo autorizadas por Moraes
26 de setembro: Folha de S.Paulo revela a existência da investigação, das quebras de sigilo e das transações suspeitas investigadas pela PF a mando de Moraes
27 de setembro: Moraes ordena a abertura de um inquérito para investigar o vazamento da informação
5 de outubro: PF pede novas quebras de sigilo bancário de janeiro de 2018 até setembro de 2022: Naya Bittencourt, Zelia Barros, Cedro Libano Comércio de Madeiras, Vanderlei Cardoso de Barros; de Murilo Ziloti, entre janeiro de 2019 e setembro de 2022; e extensão das quebras de todos os alvos do 1º e 2º pedidos para período de 9 de agosto a 30 de setembro de 2022
7 de outubro: Moraes encaminha, pela primeira vez, pedido para apreciação da PGR
17 de outubro: PGR pede arquivamento da investigação e anulação de todas as provas colhidas pela PF. Moraes autoriza novas quebras e sequer cita Procuradoria em sua decisão
2 de dezembro: PF pede quebra de sigilo telemático do assessor Luis Marcos dos Reis, de Mauro Cid e outros alvos.
16 de dezembro: Moraes autoriza novas quebras de sigilo
19 de dezembro: PGR interpôs novo agravo regimental contra a decisão de Moraes. PF envia novo relatório de análise do material proveniente das quebras de sigilo de Mauro Cid. Pela primeira vez aparecem as suspeitas de fraude no cartão de vacinação
19 de janeiro de 2023: PF pede nova quebra de sigilo telemático de Mauro Cid e também de Gabriela Cid e Ailton Gonçalves Moraes Barros
26 de janeiro: Moraes autoriza as novas quebras de sigilo
2 de fevereiro: PGR pela primeira vez não interpôs agravo e diz ter tomado ciência da decisão de Moraes
23 de fevereiro: PF encaminha a Moraes notícia de fato da Controladoria-Geral da União sobre possível fraude em inserção de dados no sistema de vacinação do Ministério da Saúde
26 de fevereiro: Moraes decide que caso da vacina tem relação com investigação em andamento que faz devassa em dados de Mauro Cid e outros assessores
6 de abril: PF pede para Moraes compartilhar áudios em que Ailton Gonçalves Moraes Barros e outros militares falam de possível golpe de Estado com o inquérito dos ataques de 8 de janeiro
18 de abril: PF pede busca contra Bolsonaro, Michelle e outros e prisão de Mauro Cid e outros assessores.
20 de abril: Moraes autoriza compartilhamento dos áudios de Ailton com o inquérito 4.923, dos atos de 8 e janeiro
21 de abril: Posição da PGR muda completamente sob governo Lula. Antes, afirmava que material era ilegal e deveria ser anulado, agora concorda com buscas e prisões solicitadas com base nas informações. Se manifesta contra somente nos pedidos contra buscas em Jair Bolsonaro e Michelle
28 de abril: Moraes autoriza as prisões e buscas. Somente Michelle fica de fora.
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