Todos os anos, Mossoró, no Oeste potiguar, se enche de festa no mês de
junho. Além de comemorar o período de São João, a cidade relembra
através do espetáculo "Chuva de Bala", a resistência do seu povo a
Virgulino Ferreira da Silva, o temido Lampião - ato que marcou, para
alguns historiadores, o início do declínio daquele que ficou conhecido
como rei do cangaço. A batalha aconteceu em 1927 e o bando de
cangaceiros saiu fugido da região.
Em 2020, a festa não vai ser realizada por causa da pandemia do novo
coronavírus. Mas os pesquisadores do tema estão muito mais entusiasmados
pelo encontro de uma carta que foi escrita pelo prefeito coronel
Rodolpho Fernandes em resposta ao bando de Lampião. Ela estava
endereçada ao coronel Antonio Gurgel, que no momento das negociações,
era refém do bando e foi escrita, provavelmente, no próprio dia 13 de
junho de 1927, data em o ataque ocorreu.
O documento foi encontrado pelo professor, jornalista e escritor
sergipano Robério Santos, que é um entusiasta do assunto e tem seis
livros publicados sobre o cangaço. O documento chegou a ele em maio,
durante sua pesquisa para a publicação da primeira de uma série de cinco
obras que pretende escrever também sobre o tema. A carta será entregue
por ele à prefeitura, oficialmente, no próximo dia 13.
Carta escrita a mão pelo prefeito de Mossoró e enviada a refém de Lampião — Foto: Cedida |
Não é possível satisfazer-lhe a
remessa dos 400000 (quatro centos contos) que pede, pois não tenho e
mesmo no commercio é impossivel de arranjar tal quantia. Ignora-se onde
está refugiado o gerente do Banco, Snr. Jayme Guedes, Estamos dispostos a
recebe-los na altura em que elles desejarem. Nossa situação oferecce
absoluta confiança e inteira segurança.
— Rodolpho Fernandes, prefeito de Mossoró em 1927
O pesquisador afirmou que adquiriu alguns recortes de jornais e outros
materiais de uma idosa que mora no Rio de Janeiro e que prefere manter
sua identidade em sigilo, mas que é ligada à história do cangaço.
"Ela tinha essa carta há muito tempo, mas não conhecia a importância
dela, até porque não estava endereçada diretamente a Lampião. Ela tem
muito material. Era uma resposta do prefeito a ele, porque o coronel
Gurgel era refém e escreveu a outra carta, pedindo o dinheiro, com uma
mensagem ditada pelo Lampião", explicou o pesquisador.
Na mensagem, o prefeito recusa o pedido por 400 contos de réis, feitos
por Lampião e diz que a cidade está preparada para responder "à altura"
ao ataque dos cangaceiros.
Robério Santos exibe carta que representa resistência de Mossoró ao bando do cangaceiro Lampião — Foto: Cedida |
Segundo os pesquisadores o gerente do Banco do Brasil, Jayme Guedes, era
genro do coronel Gurgel e havia saído da cidade. Apesar de morar em
Natal, o comerciante teria sido feito refém durante uma viagem que fez à
região justamente para buscar sua esposa e filhos, ao saber do iminente
ataque do grupo. Ao errar o caminho, o carro os levou de encontro ao
acampamento dos cangaceiros. O motorista do comerciante teria servido de
emissário entre as partes.
Assim como a carta enviada pelo coronel Gurgel ao prefeito, e outra
escrita a próprio punho pelo Lampião, a carta encontrada já havia sido
citada por jornais da época e em livros importantes sobre o assunto, mas
o paradeiro dela era desconhecido, até porque o documento ficou com o
próprio bando e não com o município.
"Eu fiquei assustado quando comecei a ler, me levantei imediatamente.
Retirei do plástico para fazer uma análise, se era impressão ou se era
escrito, e a assinatura. Realmente é uma carta escrita a punho, e na
comparação com a assinatura e a escrita do prefeito, são iguais",
considerou o pesquisador. "Acho que um documento desse não deve estar em
posse de um particular, por isso busquei entrar em contato para
devolver a carta a Mossoró", conta.
Jornal da época publicou conteúdo de cartas trocadas entre prefeito de Mossoró e Lampião — Foto: Cedida |
Conforme Asclépius Saraiva Cordeiro, diretor do Museu Lauro da Escóssia -
nome do jornalista que presenciou e noticiou o ataque do bando de
cangaceiros a Mossoró - ao tomar conhecimento da carta por meio de
pesquisadores do tema que tiveram contato com Robério, a prefeitura
resolveu pagar uma passagem para a ida do pesquisador ao município,
quando será realizada a entrega da carta.
"A carta deverá ficar exposta no salão dos grandes atos, no Palácio da
Resistência, que era a casa do prefeito e hoje é a sede da prefeitura
municipal. Infelizmente não teremos o espetáculo Chuva de Bala neste
ano, mas temos um motivo de soltar fogos", considerou.
De acordo com o pesquisador e escritor Geraldo Maia, que é sócio
correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do
Norte (IHGRN) e da Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço - SBEC, a
carta encontrada seria uma das quatro trocadas entre o grupo que estava
com Lampião e o prefeito, ditada pelo cangaceiro e escrita pelo refém
coronel Gurgel. Outra missiva foi escrita e assinada pelo próprio
Lampião, também respondida pelo prefeito. Ninguém sabe o paradeiro da
carta original de Lampião - apesar de haver cópias da original - nem o
paradeiro da última resposta.
Lampião (terceiro da esq. para a dir.) e seu grupo de cangaceiros — Foto: Divulgação/GESP/BBC |
Invasão e resistência
Mossoró era uma cidade com pouco mais de 20 mil pessoas - uma cidade
grande para a época, que tinha até uma agência do Banco do Brasil - a
número 036. De acordo com os pesquisadores, bandos de cangaceiros
geralmente não invadiam cidades deste porte. "Era uma coisa
inimaginável", afirma Geraldo.
De acordo com os pesquisadores, um fazendeiro que acoitava cangaceiros
em suas terras no Ceará, próximo à divisa com Mossoró, ordenou um ataque
de Massilon, um cangaceiro que tinha um grupo pequeno, contra inimigos
em Apodi, no interior do Rio Grande do Norte. O sucesso no saque à
cidade teria despertado a cobiça por Mossoró. Dessa forma, os
cangaceiros partiram para convencer Lampião, que não conhecia muito as
terras do Rio Grande do Norte, a fazer um ataque conjunto também com o
bando de Jararaca.
Ao todo, o grupo de cangaceiros tinha cerca de 80 pessoas. Ao saber das
notícias que corriam pelo sertão, o prefeito começou a se preparar para
defender o município. "A cidade tinha pouco policiamento, cerca de 10
soldados, então o prefeito se juntou aos comerciantes para fazer uma
cota e mandar comprar armas e munições em Fortaleza. Elas ficaram
armazenadas na prefeitura para o possível ataque", conta Geraldo.
Uma semana antes do ataque, o grupo com dezenas de cangaceiros entrou no
Rio Grande do Norte pela região de Luis Gomes, no Alto Oeste, e arrasou
oito municípios por onde passou, até chegar, no dia 12 de junho, a São
Sebastião, onde hoje é a cidade de Governador Dix-Sept Rosado. Ainda de
acordo com os historiadores, o telégrafo ainda conseguiu enviar uma
mensagem a Mossoró, avisando do ataque.
Ao longo do dia, a cidade foi sendo esvaziada, com famílias pegando trem
para deixar Mossoró e um grupo de resistência com mais de uma centena
de homens começou a se preparar para o ataque. Segundo os estudiosos,
era final da tarde do dia 13 quando o bando começou a percorrer as ruas
vazias e começou uma trocou tiros durante cerca de duas horas com os
moradores resistentes.
O bando acabou fugindo, deixando para trás homens feridos, como o
cangaceiro Jararaca, que foi preso, morreu e foi sepultado em Mossoró. O
prefeito, que tinha a saúde fragilizada, morreu meses após o ataque.
História...
G1-RN
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