Luís 14 é considerado uma espécie de encarnação do Absolutismo.
Seu reinado de 72 anos e 110 dias é o maior de qualquer monarca Europeu
(Elizabeth 2ª precisa de mais quatro anos para alcançá-lo). Ganhou o
megalômano apelido de Rei Sol por escolher o Sol como seu símbolo, e
gostar de ser comparado ao deus grego do Sol, Apolo. Também mencionavam a
regularidade de seus horários.
Mas não porque, como se imagina hoje, o mundo girava em torno dele. O
heliocentrismo, em 1643, quando ascendeu ao trono, ainda era polêmico
entre católicos. Mas não seria mais na era do Iluminismo, quando Luís
passou a simbolizar o que havia de errado com o Antigo Regime
absolutista: centralizador, mercantilista, personalista, teocrático.
Lembrado por episódios como quando expulsou os protestantes da França.
Foi nessa época que acabou registrada a frase que supostamente representava sua concepção de governo: L‘état, c’est moi, “O
Estado Sou Eu”. Ninguém sabe quem escreveu isso primeiro, mas não há
qualquer menção até o final do século 18, muitas décadas após o fim de
seu reino, em 1715. Já denunciada como apócrifa no século 19, a frase
continua a ser repetida como uma verdade de conhecimento comum até hoje.
No rol de frases como: “Se eles não têm pão, que comam brioches!”
(Maria Antonieta quase certamente jamais disse isso) e “Os fins
justificam os meios” (Maquiavel escreveu um bem mais inofensivo: “É
preciso considerar o resultado final”).
O CONSTITUCIONALÍSSIMO
A frase falsa leva a uma frase real de Jair Messias Bolsonaro. O presidente apareceu de manhã (dia 20/04/2020) dizendo: “A constituição sou eu”.
Ou, mais exatamente: “Eu sou, realmente, a Constituição”. Isso foi
comparado ao que Luis 14 não disse. Bolsonaro se pondo no lugar de um
líder autocrático dizendo que ele determina o que é Constituição.
Mas o contexto era uma negação de ser alguém assim. Na mesma
entrevista, afirmou: “Peguem o meu discurso. Não falei nada contra
qualquer outro Poder. Muito pelo contrário. Queremos voltar ao trabalho,
o povo quer isso. Estavam lá saudando o Exército brasileiro. É isso,
mais nada. Fora isso é invencionice, tentativa de incendiar a nação que
ainda está dentro da normalidade”. Chegou a repreender um fã que falou
em fechar os outros poderes.
Enfim, o que ele quis dizer, provavelmente, é que é ultra-constitucional. O mais constitucional de todos. Constitucionalíssimo.
Mas a gente sabe o que Jair fez domingo passado.
Liderou uma manifestação pedindo precisamente por rasgar a Constituição
e realizar uma intervenção militar contra os outros poderes, em frente à
sede do Exército, não menos. Gritou palavras de ordem como: “Nós não
queremos negociar nada! Nós queremos ação pelo Brasil!” e “Chega da
velha política! Agora é Brasil acima de tudo e Deus acima de todos!” Se
não falou abertamente em golpe, não deve nem ser por medo das
instituições, que continuam a deixar claro que absolutamente nada que
fizer terá consequências além de protestos impotentes. Mas porque os
golpes preferem chamar a si de “revolução”.
REI TREVAS
Se me permitem, vamos concluir com um desvio para a opinião. A fala
de hoje se insere numa estratégia de negação plausível, escapar da
responsabilidade, poder formalmente “provar” sua inocência.
A mensagem não é endereçada ao bolsonarista profundo, que o considera
um enviado pelo Divino, e possivelmente não entende a fala
“democrática” como razão para frustração. Ao contrário, é uma prova dele
ser um homem bom demais para este mundo, que mantém a democracia como
generosa concessão – até onde durar sua paciência.
A mensagem é para direitistas de outras estirpes na base, como guedistas, moristas e, mais que tudo, militares. A
função dessa defesa formal é dar “provas” de que a oposição está sendo
histérica, injusta, golpista, que só discorda dele por ter perdido as
eleições. Que não há nada de anormal acontecendo. É o mesmo método usado
quando uma fonte no governo solta alguma informação para, logo após a
imprensa publicar, Bolsonaro aparecer negando ruidosamente,
descreditando a “mídia lixo”. Para confirmar a notícia um tempo depois.
Rei Sol na Pauta.
Fábio Marton/Folha de São Paulo
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