O Ministério Público de São Paulo investiga a associação religiosa
Testemunhas de Jeová por suspeita de ter acobertado casos de abuso
sexual, inclusive de crianças e de adolescentes, em suas congregações.
De acordo com a apuração da Promotoria, a organização teria
constrangido vítimas a não denunciar os crimes. Por conta disso, afirma,
muitos dos delitos já estariam prescritos.
Iniciado em setembro de 2019, o inquérito, que corre sob segredo
judicial, tem como base o relato de seis pessoas que afirmam terem
sofrido diversos abusos de natureza sexual e psicológica.
Um dos casos é o de E.G.L.B, de 37 anos. Aos 12 anos, ela era
candidata ao batismo quando foi entrevistada por um ancião (nome dado
aos membros experientes, que têm a função de supervisionar as
congregações).
“O ancião começou falando sobre sexo”, disse. Logo depois, segundo o
relato feito à Promotora, levantou-se e passou a apalpar os seios da
garota. “Ele me disse, não precisa ficar com medo de mim, sou como um
pai para você. Na sequência, abriu a calça e tirou o pênis.”
Meses depois, E.G.L.B e sua mãe decidiram relatar o caso a outros
dois anciões. “Eles ficaram transtornados, mas acabaram por pedir que
não falássemos nada para ninguém”, lembra. “Disseram que deveríamos
deixar nas mãos de Jeová, que ele resolve tudo.”
Em documento enviado à Justiça, a promotora Celeste Leite dos Santos
diz que a associação, sempre que sabia de alguma situação de abuso,
afirmava que só poderia tomar providência caso houvesse confissão do
autor ou se existissem duas testemunhas presenciais do crime.
Ela afirma também que as vítimas poderiam ser afastadas da
organização se fizessem denúncias. Quando alguém é desassociado das
Testemunhas de Jeová, diz a promotora na petição, “perde-se também o elo
com os parentes” que integram a igreja.
A promotora diz que a investigação começou após ela ter sido
procurada por uma das vítimas. “Precisava de ajuda porque foi ameaçada
por estar denunciando”, diz. “Estava sendo intimidada, nos escreveu
pedindo socorro.”
Celeste é coordenadora de um projeto do Ministério Público paulista, o
Avarc (Acolhimento de Vítimas, Análise e Resolução de Conflitos), que
procura ter um olhar mais atento e humanizado às vítimas de crimes
ocorridos no estado de São Paulo.
Religião criada no final do século 19 nos Estados Unidos, as
Testemunhas de Jeová têm cerca de 1,4 milhão de adeptos no Brasil, de
acordo com o IBGE de 2010. Seus fiéis acreditam que sua religião é a
restauração do verdadeiro cristianismo.
Segundo o pesquisador Eduardo Góes de Castro, as Testemunhas de Jeová
encaram a sua religião como um modo de vida, “sendo que todos os outros
interesses, incluindo o emprego e a família, giram em torno de suas
crenças”.
A associação defende uma vida moderada e a submissão das mulheres aos
homens. Não aceita a transfusão de sangue e o serviço militar. As
Testemunhas de Jeová dizem basear todo seu sistema de crenças e práticas
na Bíblia.
Além do relato das vítimas, o Ministério Público colheu o depoimento
de nove testemunhas, entre as quais alguns ex-anciões. Segundo essas
testemunhas, a igreja registra todos os relatos de abuso e os arquiva
nas congregações. Posteriormente, esses dados seriam repassados à sede
da entidade, nos Estados Unidos.
Em razão de uma série de casos de abusos investigados no exterior, o
comando mundial da organização teria ordenado, de acordo com o relato
feito à Justiça, a destruição de todos os registros confidenciais de
crimes.
Com base nesse receio, a Justiça determinou a realização de operações
de busca e apreensão de documentos em 15 endereços da entidade,
incluindo a sede, localizada no município de Cesário Lange, no interior
de São Paulo.
No Salão do Reino [nome dado aos templos] do bairro da Liberdade, por
exemplo, a polícia colheu cinco envelopes com supostas provas. Num
deles, haveria informações sobre um ancião que teria molestado
sexualmente suas filhas de 12 e 14 anos.
Em outro documento, haveria o relato de um fiel com “conduta
desenfreada no serviço secular com várias mulheres”. De acordo com o
Ministério Público, os dirigentes da associação podem ser denunciados se
ficar provado que tiveram ciência de casos de crimes sexuais, que não
informaram as autoridades e que permitiram seu prosseguimento.
À Justiça, a entidade afirmou que não há nenhuma prova de ilegalidade
ou omissão de sua parte. “Pelo contrário, as provas juntadas nos autos
pelo próprio Ministério Público indicam que a associação preocupa-se em
proteger os menores em seu meio”, afirma.
Em petição apresentada ao Tribunal de Justiça, a entidade pediu a
suspensão do inquérito. Declarou que nunca “houve qualquer orientação
para encobrir tais casos ou tratá-los apenas internamente, como se
houvesse um tribunal eclesial próprio”.
Disse também que nenhum documento apreendido pelos policiais tem
relação com as supostas vítimas que procuraram o Ministério Público. “A
busca serviu apenas para violar o sigilo eclesiástico, expor dados
sensíveis de pessoas alheias às investigações e violar garantias
constitucionais de uma entidade religiosa e de seus fiéis.”
O Tribunal de Justiça não aceitou o pedido. Em decisão no final de
janeiro, afirmou que a investigação contém indícios bastante relevantes
quanto à prática de crimes sexuais. “Não há motivo para suspender o
procedimento.”
Assim como as Testemunhas de Jeová, a Igreja Católica é alvo de
acusações de abuso sexual de crianças e de jovens por padres e
religiosos nos últimos 20 anos, em diversos países do mundo.
O papa Francisco ordenou no mês de dezembro mudanças na forma como a
igreja lida com os episódios, eliminando a regra do sigilo pontifício,
usada até então para manter casos em segredo. Com a alteração, a igreja
pode passar a enviar para autoridades civis documentos e provas
relacionados a suspeitas de abusos sexuais.
No Brasil, outro caso de crimes sexuais envolvendo religiosos ocorreu
em Goiás, com o médium João Teixeira de Faria, o João de Deus,
condenado a mais de 40 anos de prisão por estupros.
OUTRO LADO
Procurada pela Folha, a Associação Torre de Vigia de Bíblias, nome da
corporação jurídica usada pelas Testemunhas de Jeová, disse não ser
apropriado comentar assuntos sob segredo judicial, mas disse que
colaborará com qualquer procedimento jurídico que envolva a proteção de
menores.
Em nota enviada à reportagem, afirma que “as Testemunhas de Jeová
abominam qualquer tipo de violência, inclusive a sexual, e a consideram
como um crime”. Segundo o texto, a política da associação para a
proteção de menores requer que os anciãos, ao tomarem conhecimento de
alguma alegação de abuso, relatem o fato às autoridades.
A associação diz que, quando não há confissão, “a Bíblia requer que
duas testemunhas estabeleçam o que ocorreu” para que os anciãos possam
tomar medidas eclesiásticas. Ressalva, no entanto, que esse procedimento
religioso não deve ser confundido com o encaminhamento dos casos às
autoridades ou não. “Uma denúncia pode ser feita às autoridades mesmo
que haja um único denunciante e nenhuma prova adicional.”
Nossa...
FOLHAPRESS
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