A Associação para Desenvolvimento Local Coproduzido (Adelco), entidade que atua em defesa dos direitos dos índios e do meio ambiente, e uma liderança indígena relatam que facções criminosas estão ocupando áreas habitadas por índios no Ceará. O grupo organizado tenta, segundo os relatos, ampliar a região de alcance do tráfico de drogas e recrutar índios para suas organizações.
As denúncias falam da existência de, pelo menos, quatro etnias ameaçadas por esses grupos criminosos, tanto na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), quanto no Litoral Oeste do Ceará.
A facção vêm disputando territórios no Ceará desde 2015. A liderança indígena que faz a denúncia já foi incluída no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH).
Equipamentos públicos com siglas de facções
Em pelo menos três comunidades indígenas do município de Caucaia, na Grande Fortaleza, constam marcações em equipamentos públicos com siglas de facções, o que denuncia a dominação do crime organizado nessas regiões. Há informações de dominação territorial criminosa nas localidades do Trilho, da Ponte e Capoeira, todas da etnia Tapeba.
Também constam registros de atuação de facções em outras três etnias: Tremembé, na cidade de Itarema; Pitaguary, em Maracanaú; e Jenipapo-Kanindé, em Aquiraz, na Região Metropolitana de Fortaleza.
Escolas e postos de saúde indígenas dos Tapeba apresentam diversas pichações de ameaça. A menos de 100 metros da Escola Indígena da Ponte é possível observar a mensagem “baixe o vidro, tire o capacete. Ass: crime”. As inscrições em picho funcionam como aviso para os que tentam entrar na comunidade.
A poucos quilômetros da comunidade da Ponte, há o Polo Base de Saúde Indígena Potyrõ, cuja linha de atuação é voltada para a comunidade do Trilho. Neste equipamento público, em todas as suas laterais, com exceção da frente, há inscrições de uma facção.
MP não faz investigação e secretaria diz não ter registro
Apesar dos relatos, o Ministério Público do Ceará (MPCE) diz que "neste momento, não há nenhuma denúncia ou investigação, no âmbito do MPCE, sobre este tema". No entanto, o órgão informou que, por meio do Grupo de Atuação Especial de Combate às Organizações Criminosas (Gaeco), investiga facções em todo o estado, incluindo nas terras indígenas.
A Secretaria da Segurança Pública do Ceará também destacou que “não existem registros de ocorrências de maior gravidade nas áreas indígenas do Ceará motivadas pela condição de índios habitantes destas áreas”. Conforme o órgão, a atuação da Polícia Militar nessas reservas “é pautada em dados que são registrados por meio de boletins de ocorrência”.
Pichações e ameaças
Na Comunidade Capoeira, a situação alcança o seu maior nível. Nas ruas do entorno do aldeamento, uma série de marcações sugere a amplitude da organização criminosa no local. Inscrições como “Tudo comandado”, “X-9 aqui é bala”, “Aqui não precisa de polícia” e“Morador é intocável” se estendem por inúmeras casas de quase toda a Rua do Grupo, no bairro Laje.
Foi nesta localidade que Antônio da Cunha de Sousa, de 34 anos, foi assassinado no último sábado (11). Segundo a Polícia Militar, ele teria sido morto por facções criminosas após prometer vingar a morte do irmão, ocorrida dias antes. O caso ocorreu na entrada da aldeia indígena Capoeira.
Na noite do homicídio, o tenente Cícero Filho, do 12º Batalhão de Policiamento de Caucaia, disse que a reserva indígena é "um ambiente difícil de realizar um serviço ostensivo da polícia". "Os traficantes fazem o aliciamento de imóveis na região para guardar drogas e armas”, afirmou.
Áreas dominadas
Segundo a liderança indígena que fez o relato da presença dos criminosos, já há moradores sendo expulsos de casa.
“Algumas áreas são realmente dominadas. Algumas famílias foram expulsas e a atuação dos órgãos de segurança tem sido muito ineficaz”, diz.
Segundo esta liderança, os grupos criminosos “acabam atuando por causa da omissão do Estado Brasileiro, que abre precedente muito grave pra que as facções dominem os territórios”.
De acordo com o antropólogo e pesquisador da Universidade Federal do Ceará (UFC) Babi Fonteles, isso tem ocorrido de maneira um pouco generalizada nas comunidades indígenas. "Existe um processo crescente de violência e urbanização no entorno desses territórios”, explica.
Conforme o professor, essas comunidades estão vulneráveis “por negligência do poder público de cumprir o seu papel constitucional de demarcação e proteção dessas terras”.
Para o procurador da República Ricardo Magalhães de Mendonça, do Ministério Público Federal no Ceará (MPF-CE), a ação criminosa “é uma severa restrição ao direito de ir e vir". "Isso agrava ainda mais no caso dos índios porque o próprio estilo de vida deles é de circular livremente”.
A coordenadora-geral executiva da Associação para Desenvolvimento Local Coproduzido (Adelco), Adelle Azevedo, enfatiza o problema das facções, evidenciando a ausência de políticas públicas voltadas para as etnias.
“Quando o Estado não chega dentro dos territórios indígenas, as facções tomam conta. Se você não tem programas e projetos pra juventude, que é uma ausência dentro das comunidades indígenas, elas acabam sendo aliciadas pelas facções”, ressalta.
“Agora, é mais complicado sair à noite porque, como é uma área mais distante e o tráfico de drogas é comum, acaba prejudicando o cotidiano das aldeias. Há alguns locais em que as equipes da saúde não entram porque aquela área é dominada por facção”, afirma Adelle Azevedo.
Recrutamento de indígenas
A liderança indígena entrevistada pelo G1 ressalta que o problema ainda é maior porque o “crime organizado acaba recrutando alguns indígenas”. Há relatos de que integrantes de facções criam laços de amizade ou formam famílias com moradores das aldeias.
Com relação ao combate a organizações criminosas, a Secretaria de Segurança Púbica ressaltou que são realizadas “ações adotadas em todo o território cearense”. A pasta citou o Programa de Proteção Territorial e Gestão de Riscos (Proteger), bases fixas da Polícia Militar, estratégias montadas com o objetivo de quebrar a cadeia de crimes, além dos investimentos em tecnologia, efetivo e equipamentos.
Órgãos divergem sobre responsabilidade
As entidades que representam a Polícia Civil e Militar, além da Polícia Federal, bem como as entidades do Ministério Público divergem sobre a competência de atuação nesses territórios.
A Secretaria da Segurança Pública informou, em nota, que a Polícia Civil "atua nas apurações de homicídios que não estão ligados diretamente à condição da vítima ser índio (a), além de roubos, furtos, tráfico de drogas, entre outras". Segundo o órgão, "no caso de crimes específicos contra a população indígena, a competência das investigações é da Polícia Federal".
A assessoria da PF disse que "não se pronuncia sobre possível existência de investigação". "Quanto à competência, se o crime atingir diretamente bem, serviço ou interesse da União, a PF investiga. Se não, quem investiga é a PC [Polícia Civil]", apontou.
Para o procurador da República do Ministério Público Federal no Ceará (MPF-CE), Ricardo Magalhães de Mendonça, nem todos os casos são de competência da investigação federal. Para ele, só deve ter apuração neste nível os que envolvem disputas por direitos indígenas, como a terra.
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