O delegado da Polícia Civil no Pará, José Humberto de Melo, afirmou
que a Polícia Civil tem “farto material” investigativo sobre a suposta
atuação irregular de organizações não governamentais do Estado paraense.
Em entrevista ao Estado, Melo disse que membros de
três ONGs locais – Brigada Alter do Chão, Aquíferos Alter do Chão e
Projeto Saúde e Alegria (PSA) – teriam recebido repasses da ONG
internacional WWF, que também atua no Brasil, para combater incêndios na
região de Alter do Chão, no município de Santarém. Parte dos recursos, porém, segundo o delegado, teria sido desviado. Nesta manhã, quatro membros da Brigada foram presos e vários materiais forem recolhidos no escritório da PSA.
“Temos um material vasto relacionado a isso. Existe um indício muito
forte de participação dessas três ONGs nesse esquema”, comentou Melo.
A WWF não é alvo da investigação. Segundo o delegado, a ONG teria
apenas repassado os valores. Em uma única semana, disse Melo, R$ 300 mil
teriam sido enviados para as três instituições do Pará, sendo a maior
parte desses recursos provenientes da WWF.
As empresas locais, no entanto, aponta a investigação, teriam
utilizado documentos falsos para superfaturar valores e, contabilmente,
sinalizar que todo recurso teria sido utilizado. “Numa semana, R$ 300
mil foram pagos. Mas tudo indica que as ONGs não chegaram a aplicar
menos de R$ 100 mil”, comentou. “Além disso, os próprios donos das ONGs
se contratavam para prestar os serviços.”
Mais cedo, a nota divulgada pela Polícia Civil não abordava o tema de
desvio de recursos. Afirmava que, durante dois meses de investigações,
foram colhidos indícios que apontam o envolvimento de ONG’s “como
causadoras dos referidos episódios” de incêndios na região, em setembro.
Em coletiva de imprensa, o delegado chegou a ler uma das conversas
entre os suspeitos que teriam sido apreendidas na investigação. Em uma
delas, por exemplo, um dos suspeitos, identificado como Gustavo, fala
com uma mulher nomeada Cecília, e menciona os incêndios, mas o delegado
não mencionou qual crime estariam praticando. Veja abaixo o teor integral da conversa:
Mulher: Estou um pouco preocupada com o incêndio aí, né. Então…
Gustavo: Se você tiver um tempo, aí a gente pode conversar, estou por
trás de tudo. Sou da Brigada Alter, a gente está com o Instituto
Aquífero Alter, que fundou a brigada a um ano e meio atrás. E… pedindo
apoio de todo mundo. A WWF está esperando uma resposta segunda-feira de
um contrato de R$ 70 mil em equipamentos para a Brigada.
Mulher: Ah, que bom…
Gustavo: A vaquinha deu R$ 100 mil pra galera. Uma vaquinha nossa. Tá
maravilhoso! Tá maravilhoso! A galera tá num momento pós-traumático,
mas tudo bem.
Mulher: Que bom!
Gustavo: Quando vocês chegarem vai ter bastante fogo, na rota inclusive. Se preparem…o horizonte vai estar todo embaçado.
Perplexidade
Por meio de nota, a organização Brigada Alter do Chão disse que
a prisão preventiva de membros da ONG, que desde 2018 atua na região do
oeste do Pará, “causou grande perplexidade a eles e a todos os cidadãos
de bem que sempre lutaram em prol da preservação da Amazônia”.
“Os brigadistas desde o início têm contribuído com as investigações
policiais. Inclusive, já haviam sido ouvidos na Delegacia de Polícia
Civil e colaborado de forma efetiva no inquérito após o incêndio de
setembro que eles ajudaram a combater, deixando suas famílias e
trabalhos em nome dessa causa a que se dedicam. Forneceram informações e
documentos às autoridades policiais de forma completamente voluntária”,
disse a organização na nota.
A ONG informou ainda que os advogados Wlandre Leal, Renato Alho e
Gabriel Franco “estão tomando todas as providências legais para colocar
os brigadistas em liberdade imediatamente”. E complementa: “Com toda a
absoluta certeza, a verdade real dos fatos virá à tona ao longo da
Instrução Processual e a inocência da Brigada será provada. A defesa
entende que neste momento, os requisitos autorizadores da Prisão
Preventiva existentes no Artigo 312 do Código de Processo Penal de forma
alguma restam evidenciados”.
A Polícia Civil cumpriu quatro mandados de prisão preventiva contra
Daniel Gutierrez Govino, João Victor Pereira Romano, Gustavo de Almeida
Fernandes e Marcelo Aron Cwerner, além de sete mandados de busca e
apreensão em diversos endereços. As ações foram realizadas através da
Delegacia Especializada em Conflitos Agrários de Santarém (Deca) e
Núcleo de Apoio à Investigação (NAI), com o apoio da Diretoria de
Polícia do Interior (DPI).
Caetano Scannavino, do Projeto Saúde e Alegria deu uma entrevista em
Brasília, onde estava nesta terça. O escritório da organização foi alvo
de busca e apreensão nesta manhã, mas, segundo ele, o mandato não
definia o que poderia ser recolhido. “Levaram tudo: computador,
servidor, documentos, livro-caixa, uma série de coisas, naquele ambiente
de medo”, disse.
“Não sabemos até agora do que estamos sendo acusados. De por que
foram ao nosso escritório, sem decisão judicial, com um mandato
genérico, para apreender tudo. Do que estamos sendo acusados? Não
tivemos nem acesso ao inquérito”, relatou Scannavino.
Para ele, existe hoje no Brasil uma tentativa de “rebaixar
e criminalizar as ONGs, o movimento indígena, a agenda de clima”. Apesar
de só responder pela PSA, ele disse que conhece os “meninos” da Brigada
e que sempre teve confiança neles. E comentou a acusação de que eles
seriam responsáveis pelo fogo que atingiu o Alter. “Para mim isso soa
como uma piada. Salvo que esses meninos sejam atores de Hollywood,
dignos de Oscar, que consigam nos convencer de tamanha atrocidade e de
uma forma super convicta no dia a dia deles. Eles são o tipo de pessoa
que eu espero que haja mais como eles no mundo.”
Questionada sobre a citação de suas doações e a prisão de integrantes
da Brigada de Alter do Chão, o WWF-Brasil informou, por meio de nota,
que é uma organização da sociedade civil brasileira com mais de 20 anos
de atuação no País. “Um de suas frentes de trabalho é o combate ao
desmatamento da Amazônia e, neste ano, a instituição reforçou sua
atuação por ocasião do aumento escandaloso das queimadas na região. O
Plano de Emergência para Combate de Incêndios envolve ao menos 15
instituições – governamentais, como o Imasul (Instituto do Meio Ambiente
de Mato Grosso do Sul), e instituições da sociedade civil, caso da
Brigada Alter do Chão”, declarou.
O WWF explicou que, no caso da Brigada de Alter do Chão, possui
contrato de Parceria Técnico-Financeira com o Instituto Aquífero Alter
do Chão para a viabilização da compra de equipamentos para as atividades
de combate a incêndios florestais pela Brigada de Alter do Chão, em
Santarém/PA, no valor de R$ 70.654,36, vigente de 2 de outubro de 2019
até 30 de março de 2020. “Nesta modalidade de Parceria, o WWF-Brasil
viabiliza financeiramente a compra dos equipamentos para o combate ao
fogo, dentre os quais abafadores, sopradores, coturnos e máscaras de
proteção”, disse na nota.
Segundo o WWF, tendo em vista a natureza emergencial das queimadas, o
repasse foi realizado integralmente e, neste momento, a instituição
está na fase de implementação de atividades e prestação de contas, com a
comprovação da realização do que foi acordado. “A seleção desta
instituição se baseou nas boas referências recebidas de parceiros nossos
e da ampla divulgação dos trabalhos prestados pelo grupo. O WWF-Brasil
está acompanhando desde o começo do dia o desenrolar da operação e está
em busca de informações mais precisas das acusações”, afirmou.
O advogado José Ronaldo Dias Campos, baseado em Santarém e que representa os quatro que foram presos, disse ao Estado que
ainda não teve acesso aos detalhes do processo, mas que, até onde
apurou, não haveria nenhuma razão para a prisão preventiva.
“Essa decisão de prisão preventiva é excessiva e inoportuna. Estamos
falando de pessoas de bem, trabalhadores, sem qualquer tipo de problema.
Não existe nada que justifique essa prisão”, afirmou. “Teremos acesso a
inquérito nesta quarta-feira, pela manhã. Vamos trabalhar para revogar
essa prisão preventiva imediatamente.”
A defesa vai tentar reverter a decisão dada pelo juiz Alexandre
Rizzi, titular da 1ª Vara Criminal de Santarém. Se não conseguir,
considera recorrer a pedido de habeas corpus no Tribunal de Justiça do
Pará (TJ-PA).
Segundo o advogado, os quatro detidos seriam acusados de causar danos
direto ou indireto a unidades de conservação ambiental, o que prevê
pena de reclusão de um a cinco anos de reclusão, e de associação
criminosa, que prevê pena de um ano três anos de reclusão.
Histórico
As ONGs ambientais têm sido alvos constantes de acusações do governo
federal, de que estariam atuando contra a preservação da floresta. O
presidente Jair Bolsonaro e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles,
têm feito reiteradas acusações contra as ONGs sobre responsabilização
por crimes ambientais e uso irregular de dinheiro.
Até hoje, porém, não apresentaram nenhuma prova ou evidência dessas
acusações. O Greenpeace, por exemplo, vai acionar Ricardo Salles na
Justiça, por ilações que o ministro fez sobre a participação da
instituição no caso do vazamento de petróleo no litoral brasileiro.
Alter do Chão tem sido alvo frenquente de especulações imobiliárias,
com empreendedores interessados em erguer imóveis em áreas protegidas da
região. Localizada nas margens do rio Tapajós, é considerada uma das
regiões mais belas do País.
O deputado Rodrigo Agostinho (PSB-SP), que está em Brasília,
acompanha os desdobramentos do caso. “Estamos muito preocupados com
isso. São instituições muito sérias, que prestam serviços importantes na
região, para comunidades pobres. Não vimos nenhuma prova até agora,
nada que justificasse essa ação”, disse ao Estado.
Manifestações de apoio à Brigada de Alter
O Fórum Nacional Permanente em Defesa da Amazônia divulgou uma nota
de “veemente repúdio” à prisão dos membros da Brigada de Incêndio de
Alter do Chão. “Como é de conhecimento público, o balneário de Alter do
Chão, conhecido como o “caribe brasileiro”, vive um cenário de
devastação de áreas de proteção ambiental, pressão imobiliária e disputa
em torno de mudanças legislativas que permitiriam a construção de
edifícios nas margens do rio Tapajós. Os recentes incêndios ocorridos em
2019, como noticiados amplamente pela imprensa, iniciaram em áreas
invadidas por grileiros, nas margens do Lago Verde, alvo da tentativa de
instalação de um loteamento privado. Esses loteamentos já foram, por
diversas vezes, embargados pelo Ministério Público Federal do Pará, mas
as decisões foram sistematicamente descumpridas”, disse a organização.
“A tentativa de criminalizar a Brigada de Incêndio de Alter do Chão
que, junto com o Corpo de Bombeiros, foram os responsáveis pelo combate
ao incêndio e por não permitir que a devastação tivesse proporções ainda
maiores, constitui um ato de arbitrariedade, uma tentativa de manipular
a opinião pública contra o trabalho realizado pela sociedade civil de
proteger a floresta contra a ocupação predatória da Amazônia e de
esconder a responsabilidade da flexibilização da política ambiental e do
desmonte dos órgãos de fiscalização promovidos pelo atual governo
federal no aumento de 82% dos focos de incêndios deste ano”, completou.
A Anistia Internacional também divulgou nota dizendo que recebeu com
preocupação a notícia da prisão. “Não há, até o momento, informações
sobre as investigações ou os procedimentos adotados pelas autoridades
contra os acusados que justifiquem a decisão pela prisão, apenas relatos
de entrada na sede da organização Saúde & Alegria, onde funcionava a
Brigada de Alter do Chão, e coleta de documentação, o que inspira
preocupação na Anistia Internacional em relação à transparência das
investigações”, disse a organização.
Para Jurema Werneck, diretora executiva da Anistia Internacional
Brasil, houve falta de transparência nas prisões realizadas no Pará e
que isso é motivo de preocupação num contexto de ameaças de encolhimento
do espaço de atuação das organizações da sociedade civil.
“Em maio, quando lançamos nossa ação Brasil Para Todo Mundo, nós
alertamos para a intenção, manifestada por Medida Provisória pela
Presidência, de monitorar o funcionamento das organizações da sociedade
civil, criando possíveis impedimentos legais para seu funcionamento no
país. Quando os incêndios na Amazônia se tornaram uma crise
internacional para o governo, o presidente Jair Bolsonaro se apressou em
acusar, sem qualquer prova, as ONGs que atuam na floresta. E agora
vemos estas prisões sem informações que permitam à sociedade civil ter
clareza do que está acontecendo. Nossa função é monitorar as ações das
autoridades e apontar quando há falhas, e seguiremos fazendo isso.
Exigimos transparência! Destaco também que a liberdade de associação e o
funcionamento de nossas organizações são um direito humano e um direito
previsto na Constituição brasileira”, disse.
Absurdo seu moço.
ESTADÃO CONTEÚDO
Registe-se aqui com seu e-mail
ConversãoConversão EmoticonEmoticon