Um trecho do chat privado entre Sergio Moro e o procurador Deltan
Dallagnol revela que o ex-juiz discordou de investigações sobre o
ex-presidente Fernando Henrique Cardoso na Lava Jato porque, nas
palavras dele, não queria “melindrar alguém cujo apoio é importante”. O
diálogo ocorreu em 13 de abril de 2017, um dia depois do Jornal Nacional
ter veiculado uma reportagem a respeito de suspeitas contra o tucano.
Naquele dia, Moro chamou Deltan Dallagnol em um chat privado no
Telegram para falar sobre o assunto. O juiz dos processos da Lava Jato
em Curitiba queria saber se as suspeitas contra o ex-presidente eram
“sérias”. O procurador respondeu acreditar que a força-tarefa – por meio
de seu braço em Brasília – propositalmente não considerou a prescrição
do caso de FHC e o enviou ao Ministério Público Federal de São Paulo,
segundo ele, “talvez para [o MPF] passar recado de imparcialidade”.
À época, a Lava Jato vinha sofrendo uma série de ataques, sobretudo
de petistas e outros grupos de esquerda, que a acusavam de ser seletiva e
de poupar políticos do PSDB. As discussões haviam sido inflamadas meses
antes, quando o então juiz Moro aparecera sorrindo em um evento público
ao lado de Aécio Neves e Michel Temer, apesar das acusações pendentes
de corrupção contra ambos.

FHC foi citado na Lava Jato pelo menos nove vezes (1, 2, 3, 4 e 5, 6, 7, 8 e 9). Caso fossem investigados e comprovados, nem todos os possíveis crimes cometidos pelo ex-presidente estariam prescritos.
Naquele dia, antes de responder a Moro, Dallagnol encaminhou a dúvida
do juiz para um chat em grupo chamado Conexão Bsb-CWB, no qual estavam
procuradores das duas cidades. Foi de Brasília, onde o caso tramitava,
que ele recebeu a resposta de que a documentação foi encaminhada a São
Paulo sem a análise sobre a prescrição.

A acusação que Dallagnol classificou como “recado de imparcialidade”
já era de conhecimento interno do Ministério Público desde o final de
2016, graças à delação de Emílio Odebrecht, que afirmou que deu “ajuda
de campanha” a FHC para as eleições vitoriosas de 1994 e 1998. “Ajuda de
campanha eu sempre dei a todos eles. E a ele também dei. E com certeza
teve a ajuda de caixa oficial e não oficial”, afirmou o empresário,
falando sobre caixa dois. “[E]u dava e dizia que era para atender mesmo.
Então vai fulano de tal lhe procurar, como eu dizia também para
Marcelo, e eles então operacionalizavam. Ele me pediu. Todos eles.” O
valor dos pagamentos não foi divulgado.
O depoimento permaneceu em segredo de justiça até abril de 2017,
quando foi enviado para ser investigado pela Procuradoria da República
de São Paulo e virou notícia. Mas já nasceu morto: os fatos estavam
prescritos, e a investigação não poderia terminar em uma denúncia
formal. Foi arquivada pela Justiça três meses depois.
Essas revelações sugerem mais uma vez a parcialidade na Lava Jato,
que tanto Moro quanto a força-tarefa negam veementemente. Na nota
oficial divulgada pela força-tarefa em resposta à primeira série de
reportagens do Intercept no último domingo, por exemplo, eles insistiram
que seu trabalho sempre foi movido pela “imparcialidade da atuação da
Justiça”. Em entrevista ao Estadão na semana passada, o ministro Moro
disse que não via “[n]enhum viés político nas mensagens que me foram
atribuídas.”
Mas, aqui, Moro estava explicitamente preocupado com investigações da
Lava Jato contra um apoiador político de seu trabalho. E Dallagnol
admitiu acreditar que outros procuradores da força-tarefa passaram
adiante uma investigação que sabidamente não resultaria em processo, a
fim de fabricar uma falsa percepção pública de “imparcialidade”, sem, no
entanto, colocar FHC em risco.
As conversas agora reveladas fazem parte de um lote de arquivos
secretos enviados ao Intercept por uma fonte anônima (leia nosso
editorial e entenda). Os arquivos publicados até agora mostram, entre
outras coisas, que a Lava Jato sempre teve muita preocupação com sua
imagem pública, e seguia conselhos informais do então juiz Moro, o que é
ilegal.
‘Porra bomba isso’
‘Porra bomba isso’
Para os procuradores, era importante incluir o PSDB no rol de
investigados para acalmar o ânimo dos críticos. Eles já falavam sobre
isso muito antes de Moro alertar Dallagnol sobre evitar “melindrar” FHC.
Em uma conversa no dia 17 de novembro de 2015, o procurador Roberson
Pozzobon mandou uma sugestão em um grupo do Telegram chamado FT MPF
Curitiba 2: investigar, num mesmo procedimento, pagamentos da Odebrecht
aos institutos de Lula e FHC. “Assim ninguém poderia indevidamente
criticar nossa atuação como se tivesse vies partidário”, justificou
Pozzobon. “A da LILS [empresa que agencia as palestras de Lula] vocês já
sabem os indícios para a investigação, mas vejam essa fratura expostas
da Fundação iFHC”, disse ao grupo. Nesse caso – diferentemente daquele
que virou notícia na imprensa sobre caixa 2 nos anos 1990 –, os
pagamentos ao iFHC aos quais Pozzobon se referia não estariam
prescritos, caso fossem propina.
Depois de comentar sobre o instituto de FHC, Pozzobon postou duas imagens no grupo.
A primeira é uma troca de e-mails de 2014 entre a secretária de FHC e
dois interlocutores: um representante da Associação Petroquímica e
Química da Argentina, a Apla, identificado como Manuel Diaz, e um
empresário do ramo cultural, Pedro Longhi. A secretária fala para
verificarem com a Braskem – empresa do ramo petroquímico controlada pela
Odebrecht – qual a “melhor maneira para [a empresa] fazer a doação
[para o iFHC]”.

A secretária dá duas opções para o que ela chama de “doação”. Uma
delas seria fazer uma doação direta, ou seja, depositar dinheiro na
conta bancária do instituto. A outra seria a contratação de um serviço
não especificado. “Não podemos citar que a prestação de serviço será uma
palestra do presidente”, afirmou. Manuel respondeu que poderia fazerser
doação direta. Poucos dias depois, Helena Gasparian, então assessora de
FHC, enviou outro e-mail à Braskem dizendo que o ex-presidente não iria
comparecer ao evento.

A segunda imagem encaminhada por Pozzobon era de um laudo da Polícia
Federal daquele mesmo ano, que mostrava que a Odebrecht havia feito
pagamentos mensais que somaram R$ 975 mil ao iFHC entre dezembro de 2011
e de 2012.

Os policiais federais que fizeram o relatório explicaram que não
foram atrás desses pagamentos ao iFHC porque os dados da Braskem não
foram colocados à disposição deles. Mas ressaltaram: “É possível que
outros pagamentos tenham sido feitos e não tenham sido encontrados” por
causa das limitações dos dados ou caso tenham sido feitos por “meio de
triangulação entre Grupo Odebrecht, o contratante do serviço (exemplo do
evento APLA) e o Instituto Fernando Henrique Cardoso”.
Após enviar as imagens, Pozzobon sugeriu ao grupo aprofundar a
investigação sobre as doações. Ao contrário da investigação referente
aos recursos recebidos nos anos 90, esses fatos, se investigados, não
estariam prescritos e poderiam apontar caixa 2 em campanhas do PSDB. Os
procuradores reagiram com empolgação:

A euforia durou pouco, e os procuradores começaram a ponderar que o
caso teria chance de ser enquadrado apenas como crime tributário – e que
os argumentos de defesa de FHC poderiam também ser usados por Lula. O
argumento: Lula também poderia alegar que os pagamentos feitos ao
Instituto Lula e à LILS, sua empresa de palestras, não escondiam
propinas ou caixa dois.

Quase um ano e meio depois dessa conversa, o fim do sigilo da delação
de Marcelo Odebrecht, filho de Emílio, mostraria que o esquema de
remessa de dinheiro aos institutos de FHC e de Lula tinha um modus
operandi semelhante. A Fundação FHC – ex iFHC – disse ao Intercept que
os valores recebidos foram regularmente contabilizados e que “não tem
conhecimento de qualquer investigação ou denúncia do MPF tendo por base
as doações feitas pela Odebrecht”.
‘Dará mais argumentos pela imparcialidade’
‘Dará mais argumentos pela imparcialidade’
No ano seguinte às conversas do procuradores, em 2016, FHC ainda
apareceria em outras três delações (1, 2, 3). Em uma delas, ele apareceu
na boca do operador ligado ao MDB Fernando Baiano, por causa do suposto
beneficiamento da empresa de um filho do ex-presidente, Paulo Henrique
Cardoso, em contratos com a petroleira. Em junho, o caso do filho de FHC
foi mencionado no chat FT MPF Curitiba 3. A preocupação dos
procuradores era, novamente, criar a percepção pública de imparcialidade
da Lava Jato:

Três dias depois, no mesmo grupo, o assunto voltou a ser discutido.

Nós perguntamos ao Ministério Público Federal do Paraná, sede da
força-tarefa da Lava Jato, quais são os ex-presidentes investigados e em
que fase está cada um dos procedimentos. Também questionamos quais
fatos envolvendo os ex-presidentes foram mandados para outros órgãos.
Eles não responderam aos questionamentos e se limitaram a enviar as
notas já divulgadas pela instituição, que dizem que não há ilegalidade
nas trocas de mensagens reveladas pelo Intercept.
Em uma conversa com os procuradores Paulo Galvão e Carlos Fernando
Santos Lima, em 20 de maio do ano passado, no entanto, Deltan Dallagnol
relembrou quais foram os ex-presidentes investigados pela operação.
Dilma Rousseff e FHC são os únicos que ficam de fora:

Antes da publicação desta reportagem, o Intercept procurou as
assessorias do ministro Sergio Moro, do MPF no Paraná e em São Paulo, da
Procuradoria Geral da República e da Fundação Fernando Henrique
Cardoso, antigo iFHC.
A PGR disse que não vai se manifestar.
A assessoria de Moro respondeu que ele “não comenta supostas
mensagens de autoridades públicas colhidas por meio de invasão
criminosa, que podem ter sido adulteradas e editadas e que sequer foram
encaminhadas previamente para análise. Cabe esclarecer que o caso
supostamente envolvendo o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso nunca
passou pelas mãos do Ministro, então juiz da 13 Vara Federal de
Curitiba, sendo encaminhado diretamente pelo Supremo Tribunal Federal a
outros fóruns de justiça. Então, nenhuma interferência do então juiz
seria sequer possível e nenhuma foi de fato feita”.
Já o MPF do Paraná, em um segundo contato, afirmou que “a divulgação
de supostos diálogos obtidos por meio absolutamente ilícito, agravada
por um contexto de sequestro de contas virtuais, torna impossível aferir
se houve edições, alterações, acréscimos ou supressões no material
alegadamente obtido.” Para o MPF, os diálogos inteiros podem ter sido
“forjados pelo hacker”. Eles disseram também que “um hackeamento ilegal
traz consigo dúvidas inafastáveis quanto à sua autenticidade, o que
inevitavelmente também dará azo à divulgação de fake news”, dizendo que
há uma “uma agenda político-partidária” nas reportagens.
O Intercept reafirma que as reportagens da série são publicadas assim
que produzidas, editadas e checadas dentro de princípios editoriais
rigorosos, e que o material é autêntico.
Na época em que foi citado na delação de Emílio Odebrecht, Fernando
Henrique Cardoso disse que não tinha “nada a temer” e defendeu a
operação Lava Jato. “O Brasil precisa de transparência. A Lava Jato está
colaborando no sentido de colocar as cartas na mesa”, afirmou. Ao
Intercept, o ex-presidente disse, por meio de sua assessoria, que não
teve conhecimento de nenhum inquérito ou denúncia relacionados à delação
de Cerveró. Também afirmou desconhecer as menções sobre seu filho e a
compra de votos nas eleições – por isso, “não sabe se teriam resultado
em investigação ou denúncia”. A única confirmada pelo ex-presidente foi a
investigação que terminou arquivada.
Após a divulgação da primeira leva de reportagens sobre as mensagens
secretas da Lava Jato, FHC fez uma defesa pública de Moro: “O vazamento
de mensagens entre juiz e promotor da Lava-Jato mais parece tempestade
em copo d’água. A menos que haja novos vazamentos mais
comprometedores…”, disse.
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