O Blog reproduz aqui o material da The Intercept que que o procurador
Deltan Deltan Dallagnol, juntamente com outros procuradores, duviavam
das provas colhidas nos processos contra Lula e de propina da Petrobras
horas antes da denúncia do triplexe. O diálogo ainda mostra supostamente
a atuação deles:
Faltavam apenas quatro dias para que a denúncia que levaria o
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva à prisão fosse apresentada, mas o
coordenador da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba tinha dúvidas
sobre a solidez da história que contaria ao juiz Sergio Moro. A
apreensão de Deltan Dallagnol, que, junto com outros 13 procuradores,
revirava a vida do ex-presidente havia quase um ano, não se devia a uma
questão banal. Ele estava inseguro justamente sobre o ponto central da
acusação que seria assinada por ele e seus colegas: que Lula havia
recebido de presente um apartamento triplex na praia do Guarujá após
favorecer a empreiteira OAS em contratos com a Petrobras.
As conversas fazem parte de um lote de arquivos secretos enviados ao
Intercept por uma fonte anônima há algumas semanas (bem antes da notícia
da invasão do celular do ministro Moro, divulgada nesta semana, na qual
o ministro afirmou que não houve “captação de conteúdo”). O único papel
do Intercept foi receber o material da fonte, que nos informou que já
havia obtido todas as informações e estava ansioso para repassá-las a
jornalistas. A declaração conjunta dos editores do The Intercept e do
Intercept Brasil (clique para ler o texto completo) explica os critérios
editoriais usados para publicar esses materiais, incluindo nosso método
para trabalhar com a fonte anônima.
No dia 9 de setembro de 2016, precisamente às 21h36 daquela
sexta-feira, Deltan Dallagnol enviou uma mensagem a um grupo batizado de
Incendiários ROJ, formado pelos procuradores que trabalhavam no caso.
Ele digitou: “Falarão que estamos acusando com base em notícia de
jornal e indícios frágeis… então é um item que é bom que esteja bem
amarrado. Fora esse item, até agora tenho receio da ligação entre
petrobras e o enriquecimento, e depois que me falaram to com receio da
história do apto… São pontos em que temos que ter as respostas ajustadas
e na ponta da língua”.
As matérias de jornais a que o procurador se referiu são as dezenas
citadas na peça de acusação. Dallagnol fazia sua última leitura da
denúncia e debatia o texto com o grupo, analisando ponto a ponto cada
item que seria oferecido à 13ª vara de Curitiba, onde Sergio Moro atuava
como juiz.
Naquele dia, ninguém respondeu à dúvida de Dallagnol: se o
apartamento triplex poderia ser apontado como propina para Lula nos
casos de corrupção na Petrobras. O documento seria anunciado ao público,
com direito a um hoje famoso PowerPoint, dali a poucos dias.
Sem essa ligação, o caso não poderia ser tocado em Curitiba, onde
apenas ações relacionadas à empresa eram objeto de investigação. A
ligação do apartamento com a corrupção na petrolífera tinha gerado uma
guerra jurídica nos primeiros meses daquele 2016. De um lado, o
Ministério Público do Estado de São Paulo. Do outro, a força-tarefa de
Curitiba.
Caso o caso ficasse em São Paulo, não seria julgado por Sergio Moro, o
atual ministro da Justiça de Jair Bolsonaro e ex-juiz que ajudou
coordenar a operação quando era o encarregado pela 13ª Vara Federal de
Curitiba, como mostram diálogos revelados pelo Intercept.
O MPSP já investigava o caso Bancoop muito antes de Curitiba. Em uma
disputa que envolveu até mesmo o Supremo Tribunal Federal, a Lava Jato
tentava tirar o caso das mãos dos paulistas para denunciar e julgar Lula
em Curitiba. Para isso, o imóvel de Lula precisaria obrigatoriamente
ter relação com a corrupção na Petrobras.
Não era o entendimento dos promotores de São Paulo. Em março de 2016,
ao recorrerem de uma decisão judicial que jogava o caso nas mãos de
Dallagnol, eles disseram: “Em 2009/2010 não se falava de escândalo na
Petrobras. Em 2005 quando o casal presidencial, em tese, começou a pagar
pela cota-parte do imóvel, não havia qualquer indicação do escândalo do
‘petrolão’. Ao contrário, estávamos no período temporal referente ao
escândalo do ‘mensalão’. Não é possível presumir genericamente e sem
conhecer detidamente as investigações que tramitam perante a 13ª Vara
Criminal Federal de Curitiba que tudo tenha partido de corrupção na
estatal envolvendo desvio de recursos federais.”
Mas a Lava Jato venceu e, pouco tempo depois, os procuradores
conseguiram tirar o caso de São Paulo alegando que o caso do triplex
tinha, sim, envolvimento com a Petrobras. Agora, com a revelação das
conversas secretas do grupo da Lava Jato, descobre-se que os
procuradores blefaram – eles não tinham certeza dessa relação nem mesmo
poucas horas antes de apresentarem a denúncia.
E, assim, o caso parou no colo do aliado Sergio Moro.
Cerca de 24 horas depois, no sábado, 10, quando aparentemente chegou
ao item 191 do documento (que teria, em sua redação final, 274 itens),
Dallagnol vibrou com o que leu. Ele escreveu, às 22h45: “tesao demais
essa matéria do O GLOBO de 2010. Vou dar um beijo em quem de Vcs achou
isso.” A reportagem a qual ele se referia – “Caso Bancoop: triplex do
casal Lula está atrasado” – foi a primeira a tratar do apartamento no
Guarujá, muito antes da Lava Jato. Sem mencionar OAS ou Petrobras, ela
dizia apenas que a falência da cooperativa que construía o prédio
poderia prejudicar o casal Lula.
Seguiu-se então uma série de mensagens de Dallagnol a respeito da reportagem:
No mesmo minuto, Dallagnol foi a outro chat no Telegram em que além
dele estavam apenas os dois assessores de imprensa da operação em
Curitiba. “Consegguem pra mim o contato da reporter que fez esta
matéria?”, ele teclou. “pede celular, please… precisamos meio que
urgente”, insistiu, às 23h55, sem perceber que um dos assessores já
enviara o número da jornalista.
Mesmo antes de ter o telefone, no entanto, Dallagnol já parecia
aliviado quando retornou ao grupo Incendiários ROJ, em que postou às
23h08: “Vcs não têm mais a mesma preocupacção que tinham quanto ao
imóvel, certo? Pergunto pq estou achando top e não estou com aquela
preocupação. Acho que o slide do apto tem que ser didático tb. Imagino o
mesmo do lula, balões ao redor do balão central, ou seja, evidências ao
redor da hipótese de que ele era o dono”, já sugerindo a ideia para o
PowerPoint que apresentaria aos jornalistas dali a alguns dias.
Quando voltou ao grupo com os assessores e viu que o número de
telefone havia sido enviado, ele imediatamente encaminhou o contato aos
procuradores Roberson Pozzobon e Júlio Noronha, junto com um pedido e
algumas orientações:

Pelo diálogo no grupo Incendiários ROJ, não é possível saber se
Pozzobon ou Noronha fizeram o que lhes foi pedido. Mas a reportagem
seria mencionada ainda outra vez nas conversas privadas, agora a dois
dias da entrevista em que a denúncia contra Lula seria apresentada.
No dia seguinte, véspera da denúncia, foi a vez do procurador
Januário Paludo se lembrar da matéria do Globo num outro chat,
intitulado Filhos do Januário 1:
“Conversei com a TATIANA FARAH DE MELLO, que fez a reportagem em 2010
sobre o TRIPLEX. Ela realmente confirmou que foi para GUARUJA e lá
colheu diversas informações sobre os empreendimentos da BANCOOP. A
matéria era para ser sobre a BANCOOP e o calote dado nos mutuários. Em
guaruja conversando com funcionários da obra – que ainda estava no
esqueleto, é que ela descobriu que o triplex seria do Lula. Ela manteve
contato com a Assessoria de comunicação do Palácio do Planalto que
confirmou a informação. Toda parte documental, como e-mail e outros
dados foram inutilizados quando ela saiu do ‘o Globo’. Acho que podemos
tomar por termo o depoimento. Marco uma video e pronto”, escreveu o
procurador às 17h40.
“Boooooa demais Jan!”, respondeu imediatamente Pozzobon. Mas outro
procurador, Carlos Fernando dos Santos Lima, pediu prudência: “Creio que
tomar depoimento de jornalista não é conveniente.”
Os problemas da prova que Moro chamou de ‘bastante relevante’
Os problemas da prova que Moro chamou de ‘bastante relevante’
A reportagem d’O Globo não foi um item trivial nesse caso: além de
figurar na denúncia como prova de que o triplex era de fato do casal
Lula, foi usada na sentença assinada por Sergio Moro. Sobre ela, o juiz
escreveu: “A matéria em questão é bastante relevante do ponto de vista
probatório.”
Mas a reportagem não bate com ao menos dois pontos do que é dito na
denúncia do MPF. O texto do Globo atribui o triplex a Lula e, para
comprovar isso, usa a declaração do então candidato à reeleição
apresentada à Justiça Eleitoral em 2006. Ela afirma o seguinte:
“Participação Cooperativa Habitacional Apartamento em construção no
Guarujá – SP Maio 2005 – R$ 47.695,38 já pagos”. Em tese, a cota poderia
ser usada para qualquer apartamento – a defesa de Lula alegaria mais
tarde que se tratava de uma unidade simples. O que é certo é que a
palavra triplex não aparece na lista de bens do político usada pelo
Globo.
A segunda inconsistência poderia ter sido percebida pelos
procuradores com uma leitura atenta da própria reportagem. A matéria do
Globo atribuiu a Lula a propriedade de um triplex na torre B, o prédio
dos fundos do condomínio. Isso fica claro na matéria: “A segunda torre
(a torre A), se construída como informa a planta do empreendimento,
lançado no início dos anos 2000, pode acabar com parte da alegria de
Lula: o prédio ficará na frente do imóvel do presidente, atrapalhando a
vista para o mar do Guarujá, cidade do litoral paulista.”
Na denúncia feita pela Lava Jato, no entanto, os procuradores afirmam
que o triplex de Lula fica na torre A, que ainda não existia quando a
reportagem foi publicada. Mas, no item 191 da denúncia assinada pelos 14
procuradores, há o seguinte trecho (citando a reportagem do Globo):
“Essa matéria dava conta de que o então Presidente LULA e MARISA LETÍCIA
seriam contemplados com uma cobertura triplex, com vista para o mar, no
referido empreendimento”.
Segundo a apuração do jornal, isso não é verdade. A reportagem diz
claramente que o casal Lula da Silva perderia a vista para o mar com a
construção da torre A, que seria erguida à frente da torre B, portanto,
em frente ao triplex que o Globo atribuiu a Lula.
A Lava Jato usou a reportagem como prova de que o apartamento era,
sim, uma propriedade ou uma aspiração da família presidencial, mas
indicou outro imóvel na denúncia. Uma evidência de que a investigação
foi imprecisa num dos pontos mais cruciais da acusação: na definição do
imóvel que materializaria a propina que Lula teria recebido da
empreiteira.
Ao longo de semanas, nós tentamos contatos com fontes que poderiam
ter acesso à troca de e-mails entre a assessoria do petista e a repórter
do jornal, mas não obtivemos sucesso. Enquanto o Globo alega que os
e-mails foram “inutilizados”, a assessoria diz não ter guardado cópia.
Uma terceira dúvida, portanto, ainda permanece: a reportagem diz que
Lula era dono de um triplex no prédio, mas diz que a assessoria da
Presidência confirmou que o petista tinha um “imóvel” no local.
O que é verdade: a cota estava declarada em seu imposto de renda. Sem
os e-mails, não há como saber se o Globo inquiriu Lula sobre o triplex
ou apenas sobre um imóvel, ou se a assessoria do petista tomou uma coisa
por outra – e, sem querer, abasteceu a denúncia que viria contra Lula
anos depois.
Ainda que a localização do triplex na torre A ou B pareça irrelevante
para a acusação por lavagem de dinheiro, ela deveria ao menos colocar
em dúvida o valor de prova da reportagem, mencionada por Moro como um
dos argumentos para a condenação de Lula.
‘A denúncia é baseada em muita prova indireta de autoria, mas não caberia dizer isso’
Na véspera da denúncia, Dallagnol voltou ao celular e comentou mais
uma vez sobre a peça de acusação, analisando a qualidade das provas que
eles tinham em mãos. “A opinião pública é decisiva e é um caso
construído com prova indireta e palavra de colaboradores contra um ícone
que passou incolume pelo mensalão”, ele teclou no grupo Filhos do
Januário 1.
No dia seguinte, quarta-feira 14, a Lava Jato mostraria sua primeira
denúncia contra Lula, numa entrevista coletiva em uma sala de reuniões
de um hotel de luxo em Curitiba. O triplex – segundo a Lava Jato,
reformado pela OAS e doado ao político como propina em contratos da
empreiteira com a Petrobras – era a peça central da denúncia por
corrupção passiva e lavagem de dinheiro.
Dallagnol voltaria ao assunto numa conversa privada com o então juiz
Sergio Moro, em 16 de setembro, dois dias após a denúncia. O procurador
estava sendo duramente criticado por parte da opinião pública, que
alegava fragilidade na denúncia. Tinha virado, também, alvo de chacotas e
memes pelo PowerPoint que apresentou na entrevista coletiva.
O coordenador da Lava Jato escreveu a Moro: “A denúncia é baseada em
muita prova indireta de autoria, mas não caberia dizer isso na denúncia e
na comunicação evitamos esse ponto.” Depois, entrou em detalhes
técnicos: “Não foi compreendido que a longa exposição sobre o comando do
esquema era necessária para imputar a corrupção para o ex-presidente.
Muita gente não compreendeu porque colocamos ele como líder para imperar
3,7MM de lavagem, quando não foi por isso, e sim para inputar 87MM de
corrupção.”
Em privado, Dallagnol confirmava a Moro que a expressão usada para se
referir a Lula durante a apresentação à imprensa (“líder máximo” do
esquema de corrupção) era uma forma de vincular ao político os R$ 87
milhões pagos em propina pela OAS em contratos para obras em duas
refinarias da Petrobras – uma acusação sem provas, ele mesmo admitiu,
mas que era essencial para que o caso pudesse ser julgado por Moro em
Curitiba.
Preocupado com a repercussão pública de seu trabalho – uma obsessão
do procurador, como demonstra a leitura de diversas de suas conversas –,
ele prossegue: “Ainda, como a prova é indireta, ‘juristas’ como Lenio
Streck e Reinaldo Azevedo falam de falta de provas. Creio que isso vai
passar só quando eventualmente a página for virada para a próxima fase,
com o eventual recebimento da denúncia, em que talvez caiba, se entender
pertinente no contexto da decisão, abordar esses pontos”, escreveu a
Sergio Moro.
Dois dias depois, Moro afagaria o procurador: “Definitivamente, as
críticas à exposição de vcs são desproporcionais. Siga firme.” Menos de
um ano depois, o juiz condenaria Lula a nove anos e seis meses de
prisão.
Ao contrário do que tem como regra, o Intercept não solicitou
comentários de procuradores e outros envolvidos nas reportagens, para
evitar que eles atuassem para impedir sua publicação e porque os
documentos falam por si. Entramos em contato com as partes mencionadas
imediatamente após publicarmos as matérias, que atualizaremos com os
comentários assim que eles sejam recebidos.
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