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* Artigo: Sua Excelência, o delegado.

Por Andreo Zamenhof de Macedo Alves, advogado 

Em enredo recente que tomou conta da crônica policial no Estado do Rio Grande do Norte, a sociedade potiguar assistiu, estarrecida, ao Poder Judiciário relaxar o flagrante e expedir alvará de soltura de 03 (três) suspeitos presos com armas e 150 (cento e cinquenta) quilos de drogas. No centro da polêmica, o suposto excesso da autoridade policial responsável pelo flagrante, ao negar o direito do advogado em apresentar quesitos, e o reconhecimento da ilegalidade/nulidade por ato judicial proferido na audiência de custódia.

Entre o vai e vem de contundentes manifestações de populares e profissionais da área, associações representativas e entidades de classe, buscou-se justificar à sociedade o que não se podia explicar. Em meio a versões desencontradas e conflitantes dos fatos, tentou-se ora reprovar a atuação policial, ora isentá-la, apontando-se outros possíveis responsáveis pelo desastre: os advogados ou o próprio juiz presidente da audiência liberatória.

Embora ainda desconhecida nos meios policiais, como pode ser confirmada pelos advogados que desempenham a árdua tarefa de patrocinar os direitos dos arrolados como suspeitos nos cadernos inquisitoriais conduzidos em nossas delegacias, já não é mais nova a redação dada ao artigo 7º do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994), pela Lei nº 13.245, de 12 de janeiro de 2016.

Segundo a indigitada disposição, é direito do advogado assistir aos seus clientes investigados durante a apuração de infrações, “sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento e, subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente, podendo, inclusive, no curso da respectiva apuração: a) apresentar quesitos” (art. 7º, inciso XXI, da da Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994), o que encontra ressonância na jurisprudência pátria, que reconhece o contraditório e ampla defesa mitigados em sede de inquérito policial, e nos recentes debates conduzidos no âmbito do Congresso Nacional (Projeto de Lei nº 366, de 2015).

O certo é que, no caso discutido acima, que ganhou as manchetes da maciça totalidade dos veículos de comunicação do Estado, em tendo o delegado negado aos defensores o direito de apresentar quesitos aos flagranteados, caracterizada está a mácula de legalidade do procedimento investigativo, frente ao ato atentatório aos direitos e garantias inerentes à promoção da defesa dos acusados, legal e constitucionalmente assegurados.

Como cidadãos e expectadores desse infeliz entrecho, entusiastas de uma sociedade segura e justa, na qual o Estado corresponda aos anseios da população, tão carente de paz, e ao mesmo tempo assegure a todos, indistintamente, meios de defender-se, cabe algumas indagações: Será que os advogados erraram ao apresentarem quesitos na busca daquilo que acreditavam correto? Errou o Ministério Público, órgão acusador e fiscal da lei, ao “negligenciar” e requerer o reconhecimento da nulidade (o pedido de soltura foi formulado pela acusação)? Ou errou o magistrado, que deveria fechar os olhos ao arbítrio estatal e fez o que a lei manda fazer? Todos estão errados e está correto o delegado?

Não tão noticiado foi o caso ocorrido na última terça-feira, dia 27 de fevereiro, também nas dependências de uma unidade policial. 

Ciente de um depoimento prestado por uma testemunha e acreditando ser relevante ao seu mister, uma jovem advogada dirigiu-se à delegacia de homicídios e solicitou, verbalmente, como de praxe, cópia do curioso documento. “Por escrito”, ponderou o delegado. Diligente, ela o fez no mesmo dia, o que foi prontamente deferido em despacho fundamentado.

Acreditando ter logrado êxito em seu intento, esperando deparar-se com o documento fundamental à defesa da cliente e certa do sucesso de seu labor, a causídica apanhou das mãos da escrivã um calhamaço de depoimentos, mediante protocolo. Ansiosa, assenhorou-se da documentação e logo percebeu que a declaração da testemunha que lhe interessava referia-se a outros fatos que não aquele objeto do procedimento em que funcionava. Ao retornar e indagar à escrivã, a profissional foi informada da inexistência de qualquer depoimento da testemunha em questão. Mas a empenhada advogada não se deu por rogada. Afinal, muitos comentavam da existência do depoimento, tomado sem qualquer sigilo e amplamente divulgado pela própria autoridade policial.

Ao Estado não é dado faltar com a verdade objetivando driblar a parte e/ou o seu defensor. Não pode simplesmente se utilizar de subterfúgios no intuito de esconder. Não deve produzir documentos nos porões, agir nas sombras e valer-se da obscuridade, em que pese o posicionamento daqueles que fulminam as bases do nosso já carcomido Estado Democrático de Direito. A postura do Estado deve ser transparente, rente e altiva – sempre! Porque, em uma democracia moderna, o cidadão não é o bobo da corte; é o rei.

Voltando à jovem profissional: ela portou-se como advogada, firme e entusiasta em seu propósito, honrando os princípios que jurou defender. Reiterou, por escrito, o seu pleito, fundamentado no artigo 7º, inciso XIV, da lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994, com a redação dada pela Lei nº 13.245, de 2016. Mas, o Estado não se comportou como Estado. Exigiu que a patrona adequasse a sua “petição aos termos do art. 3º da Lei nº 12.830/2013”. E o que isso significa? Entregue ao pecado do orgulho e da vaidade, a autoridade policial determinou ser tratado por “excelência”, em substituição ao pronome de tratamento utilizado, qual seja: “ilustríssimo”. Pasmem!

E não foi só: feita a bizarra adequação, sobreveio despacho ainda mais inusitado, imputando à profissional, no exercício da profissão, prática de crimes como calúnia, difamação e denunciação caluniosa. Quanto aos dois primeiros tipos penais, considerando o modelo de processo penal que estamos optando, é bem provável que, em breve, será crime de calúnia e difamação discorrer sobre fatos em petições, criminalizando-se a própria advocacia; já com relação ao terceiro, sequer existe a instauração de qualquer procedimento por iniciativa da advogada acusada, essencial para se verificar o crime.
O que chama a atenção no fato acima? Tudo, certamente pensará o leitor atento. Sem dúvidas, soam absurdas as acusações lançadas à jovem advogada, a merecer a atenção dos órgãos competentes, em especial da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) – e o está! Só que não é essa a nossa proposta aqui.

O pronome de tratamento reivindicado pelo delegado tem suas raízes na idade média, sendo comumente utilizada na realeza por aqueles que não possuem título principesco, por nobres com classificação mínima de Duque, cavaleiros e eclesiásticos. Modernamente, no Brasil, de acordo com o Manual de Redação de Presidência da República, o tratamento é destinado às seguintes autoridades: a) do Poder Executivo, ao Presidente da República, Vice-Presidente da República, Ministros de Estado, Governadores e Vice-Governadores de Estado e do Distrito Federal, aos Oficiais-Generais das Forças Armadas, Embaixadores, Secretários-Executivos de Ministérios e demais ocupantes de cargos de natureza especial, aos Secretários de Estado dos Governos Estaduais e Prefeitos Municipais; b) do Poder Legislativo, aos Deputados Federais, Senadores, Ministros do Tribunal de Contas da União, Deputados Estaduais e Distritais, Conselheiros dos Tribunais de Contas Estaduais e Presidentes das Câmaras Legislativas Municipais; c) do Poder Judiciário, aos Ministros dos Tribunais Superiores, Membros de Tribunais, Juízes e Auditores da Justiça Militar. Contudo, o Projeto de Lei do Senado nº 332/2017, de autoria do Senador Roberto Requião, propõe o fim do seu uso.

Sem dúvidas, a instituição polícia civil merece o respeito e os cumprimentos da sociedade. Servidores que trabalham em péssimas condições, ambientes sujos e até insalubres, com remuneração indigna, sobrecarregados e sob estresse. Empenham-se em dar a todos o mínimo de tranquilidade, dentro dos limites que lhe são permitidos. Mesmo diante do poderio bélico das organizações armadas que dominam o nosso país, não refugam à causa da segurança pública. Mas, se for seu anseio ser uma instituição de “excelências”, não há dúvidas do prejuízo que trará.
 Andreo Zamenhof de Macedo Alves.

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