Em enredo recente que tomou conta da crônica policial no Estado do
Rio Grande do Norte, a sociedade potiguar assistiu, estarrecida, ao
Poder Judiciário relaxar o flagrante e expedir alvará de soltura de 03
(três) suspeitos presos com armas e 150 (cento e cinquenta) quilos de
drogas. No centro da polêmica, o suposto excesso da autoridade policial
responsável pelo flagrante, ao negar o direito do advogado em apresentar
quesitos, e o reconhecimento da ilegalidade/nulidade por ato judicial
proferido na audiência de custódia.
Entre o vai e vem de contundentes manifestações de populares e
profissionais da área, associações representativas e entidades de
classe, buscou-se justificar à sociedade o que não se podia explicar. Em
meio a versões desencontradas e conflitantes dos fatos, tentou-se ora
reprovar a atuação policial, ora isentá-la, apontando-se outros
possíveis responsáveis pelo desastre: os advogados ou o próprio juiz
presidente da audiência liberatória.
Embora ainda desconhecida nos meios policiais, como pode ser
confirmada pelos advogados que desempenham a árdua tarefa de patrocinar
os direitos dos arrolados como suspeitos nos cadernos inquisitoriais
conduzidos em nossas delegacias, já não é mais nova a redação dada ao
artigo 7º do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei nº 8.906, de
4 de julho de 1994), pela Lei nº 13.245, de 12 de janeiro de 2016.
Segundo a indigitada disposição, é direito do advogado assistir
aos seus clientes investigados durante a apuração de infrações, “sob
pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento e,
subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios
dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente, podendo,
inclusive, no curso da respectiva apuração: a) apresentar
quesitos” (art. 7º, inciso XXI, da da Lei nº 8.906, de 4 de julho de
1994), o que encontra ressonância na jurisprudência pátria, que
reconhece o contraditório e ampla defesa mitigados em sede de inquérito
policial, e nos recentes debates conduzidos no âmbito do Congresso
Nacional (Projeto de Lei nº 366, de 2015).
O certo é que, no caso discutido acima, que ganhou as manchetes da
maciça totalidade dos veículos de comunicação do Estado, em tendo o
delegado negado aos defensores o direito de apresentar quesitos aos
flagranteados, caracterizada está a mácula de legalidade do procedimento
investigativo, frente ao ato atentatório aos direitos e garantias
inerentes à promoção da defesa dos acusados, legal e constitucionalmente
assegurados.
Como cidadãos e expectadores desse infeliz entrecho, entusiastas de
uma sociedade segura e justa, na qual o Estado corresponda aos anseios
da população, tão carente de paz, e ao mesmo tempo assegure a todos,
indistintamente, meios de defender-se, cabe algumas indagações: Será que
os advogados erraram ao apresentarem quesitos na busca daquilo que
acreditavam correto? Errou o Ministério Público, órgão acusador e fiscal
da lei, ao “negligenciar” e requerer o reconhecimento da nulidade (o
pedido de soltura foi formulado pela acusação)? Ou errou o magistrado,
que deveria fechar os olhos ao arbítrio estatal e fez o que a lei manda
fazer? Todos estão errados e está correto o delegado?
Não tão noticiado foi o caso ocorrido na última terça-feira, dia 27
de fevereiro, também nas dependências de uma unidade policial.
Ciente de um depoimento prestado por uma testemunha e acreditando ser
relevante ao seu mister, uma jovem advogada dirigiu-se à delegacia de
homicídios e solicitou, verbalmente, como de praxe, cópia do curioso
documento. “Por escrito”, ponderou o delegado. Diligente, ela o fez no
mesmo dia, o que foi prontamente deferido em despacho fundamentado.
Acreditando ter logrado êxito em seu intento, esperando deparar-se
com o documento fundamental à defesa da cliente e certa do sucesso de
seu labor, a causídica apanhou das mãos da escrivã um calhamaço de
depoimentos, mediante protocolo. Ansiosa, assenhorou-se da documentação e
logo percebeu que a declaração da testemunha que lhe interessava
referia-se a outros fatos que não aquele objeto do procedimento em que
funcionava. Ao retornar e indagar à escrivã, a profissional foi
informada da inexistência de qualquer depoimento da testemunha em
questão. Mas a empenhada advogada não se deu por rogada. Afinal, muitos
comentavam da existência do depoimento, tomado sem qualquer sigilo e
amplamente divulgado pela própria autoridade policial.
Ao Estado não é dado faltar com a verdade objetivando driblar a parte
e/ou o seu defensor. Não pode simplesmente se utilizar de subterfúgios
no intuito de esconder. Não deve produzir documentos nos porões, agir
nas sombras e valer-se da obscuridade, em que pese o posicionamento
daqueles que fulminam as bases do nosso já carcomido Estado Democrático
de Direito. A postura do Estado deve ser transparente, rente e altiva –
sempre! Porque, em uma democracia moderna, o cidadão não é o bobo da
corte; é o rei.
Voltando à jovem profissional: ela portou-se como advogada, firme e
entusiasta em seu propósito, honrando os princípios que jurou defender.
Reiterou, por escrito, o seu pleito, fundamentado no artigo 7º, inciso
XIV, da lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994, com a redação dada pela Lei
nº 13.245, de 2016. Mas, o Estado não se comportou como Estado. Exigiu
que a patrona adequasse a sua “petição aos termos do art. 3º da Lei nº
12.830/2013”. E o que isso significa? Entregue ao pecado do orgulho e da
vaidade, a autoridade policial determinou ser tratado por “excelência”,
em substituição ao pronome de tratamento utilizado, qual seja:
“ilustríssimo”. Pasmem!
E não foi só: feita a bizarra adequação, sobreveio despacho ainda
mais inusitado, imputando à profissional, no exercício da profissão,
prática de crimes como calúnia, difamação e denunciação caluniosa.
Quanto aos dois primeiros tipos penais, considerando o modelo de
processo penal que estamos optando, é bem provável que, em breve, será
crime de calúnia e difamação discorrer sobre fatos em petições,
criminalizando-se a própria advocacia; já com relação ao terceiro,
sequer existe a instauração de qualquer procedimento por iniciativa da
advogada acusada, essencial para se verificar o crime.
O que chama a atenção no fato acima? Tudo, certamente pensará o
leitor atento. Sem dúvidas, soam absurdas as acusações lançadas à jovem
advogada, a merecer a atenção dos órgãos competentes, em especial da
Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) – e o está! Só que não é essa a
nossa proposta aqui.
O pronome de tratamento reivindicado pelo delegado tem suas raízes na
idade média, sendo comumente utilizada na realeza por aqueles que não
possuem título principesco, por nobres com classificação mínima de
Duque, cavaleiros e eclesiásticos. Modernamente, no Brasil, de acordo
com o Manual de Redação de Presidência da República, o tratamento é
destinado às seguintes autoridades: a) do Poder Executivo, ao Presidente
da República, Vice-Presidente da República, Ministros de Estado,
Governadores e Vice-Governadores de Estado e do Distrito Federal, aos
Oficiais-Generais das Forças Armadas, Embaixadores,
Secretários-Executivos de Ministérios e demais ocupantes de cargos de
natureza especial, aos Secretários de Estado dos Governos Estaduais e
Prefeitos Municipais; b) do Poder Legislativo, aos Deputados Federais,
Senadores, Ministros do Tribunal de Contas da União, Deputados Estaduais
e Distritais, Conselheiros dos Tribunais de Contas Estaduais e
Presidentes das Câmaras Legislativas Municipais; c) do Poder Judiciário,
aos Ministros dos Tribunais Superiores, Membros de Tribunais, Juízes e
Auditores da Justiça Militar. Contudo, o Projeto de Lei do Senado nº
332/2017, de autoria do Senador Roberto Requião, propõe o fim do seu
uso.
Sem dúvidas, a instituição polícia civil merece o respeito e os
cumprimentos da sociedade. Servidores que trabalham em péssimas
condições, ambientes sujos e até insalubres, com remuneração indigna,
sobrecarregados e sob estresse. Empenham-se em dar a todos o mínimo de
tranquilidade, dentro dos limites que lhe são permitidos. Mesmo diante
do poderio bélico das organizações armadas que dominam o nosso país, não
refugam à causa da segurança pública. Mas, se for seu anseio ser uma
instituição de “excelências”, não há dúvidas do prejuízo que trará.
Andreo Zamenhof de Macedo Alves.
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